Na sala, com o doutor Sócrates

Daniel Pereira

O Sócrates é invendável, inegociável e imprestável. O cartola que tascou essa pérola lá pelo começo dos anos 80 (recusando proposta do futebol francês pelo novo ídolo corinthiano) é aquele mesmo que agradeceu a Antártica pelas braminhas que ganhou.

Diz a lenda que o inefável Vicente Matheus era um brucutu semi-analfabeto. Há controvérsias. Noutra versão, ele dava essas mancadas de propósito. Pelo sim, pelo não, no caso das brejas ele poderia (na devida proporção) ter se eternizado como o McLuhan da micro-aldeia tupiniquim – afinal, hoje, braminhas e antárticas são cevadas do mesmo saco.

Especular o passado só serve para a história, costuma dizer Sócrates, o último filósofo do falecido futebol brasileiro (antes dele, só me lembro do Afonsinho, também médico como o Magrão).

O ser socrático é paradoxal por natureza. O cidadão Sócrates Brasileiro, como todo cara tímido, precisava de inspiração para extravasar sua oralidade genial. Já o jogador de futebol, não. Magro como uma vara da Fabiana Murer, antítese de atleta, tinha que evitar o contato físico com o adversário. Como só aos gênios é permitido inventar, ele mostrou ao mundo que o calcanhar não poderia ficar conhecido apenas por ter sido o ponto fraco de Aquiles, o herói grego da Ilíada.

Tempus fugit, a bola parou, o boleiro cansou e Sócrates saiu das páginas do noticiário esportivo/político para uma sala de UTI. Entrou, saiu, recaiu, voltou, hibernou e continuou vivinho da silva, para contrariar aqueles que já haviam encomendado seu paletó de madeira. Típico dele.

Alguns apressadinhos reservaram coroas de flores e fecharam o caixão antes da hora. Outros, não assinaram a sentença final, mas, por “esperteza” ou para “não tomar furo”, publicaram a biografia, ou partes dela, à guisa de enaltecer as qualidades do futuro defunto. Confesso que, nessas horas, sinto vergonha de dizer que sou jornalista.

Permitam, pois, que eu me “inclua fora” desse time de malsinados para revelar facetas do “outro lado” do personagem, que não são conhecidas pela maioria das pessoas. São duas ou três estorinhas que tive o privilégio de dividir com o Magrão em priscas eras. Talvez ele nem se lembre mais. O Sócrates cantador: entre os títulos de campeão paulista pelo Corinthians em 1979 e 1982, Espanha no meio, alguém o convenceu (provavelmente com a concordância dele!) de que poderia fazer sucesso também no campo da música caipira. Venderiam discos a rodo.

O lançamento do bolachão de vinil foi um sucesso. Pelo menos a cobertura da imprensa, nos estúdios da RCA. Da gravadora, fomos almoçar no Rodeio, badalado restaurante da época, nos Jardins. Algumas picanhas, caipirinhas e cervejas depois, ficamos à mesa apenas o Magrão, Osmar Santos, Osmar Zan, competente produtor musical da RCA, e eu. Fim de papo, cada um para seu lado. Eu já estava na rua, o Sócrates saia do estacionamento no seu Fiat 147 verde – não me lembro se a torcida do Palmeiras pegou no pé dele por isso.

- Vai pra onde? Entra aí.

Ponderei o inconveniente, perda de tempo, coisa e lousa. Ele insistiu e lá fomos nós, embalados pela euforia natural das brejas, papo aberto de dois caipiras na cidade grande desafiando o trânsito caótico rumo ao meu apartamento, na rua Major Quedinho, perto do Anhangabaú. Ali, estabeleceu-se uma relação honesta, confiável. Não ficamos amigos íntimos. Nem haveria por que. Algum tempo depois, o jornalista Claudir Franciatto estava lançando uma revista literária e o Sócrates nos deu uma bela entrevista –filosofia pura, zero de futebol.

Voltei a falar com ele em 1990, alguns meses antes da Copa da Itália. Aposentado fresquinho, com experiência no futebol da Bota, seria o comentarista ideal da rede de notícias que a agência Comunic (Cláudio Amaral) estava montando para cobrir a Copa e abastecer jornais e rádios Brasil afora. Pelo telefone, brifei. Ele gostou.

-Vem prá Ribeirão.Vamos conversar.

Fui. Na ampla e aconchegante sala do apartamento dele (rua São Sebastião, se não erro), ele, eu, e um enorme freezer abarrotado de cervejas da Antartica contemplando o cenário. Como testemunha, o irmão Sóstenes, que também queria ser cantor. Aí, sim, meninos, eu vi, de fato, quem era aquele caboclo que falava e bebia comigo como se estivesse no terreiro de sua casa de chão batido lá no cafundó do Pará.

Claro, molhamos todas as palavras a que tínhamos direito. Moderadamente, até o fim, como convém aos empertigados bebedores sociais. Ele não pode aceitar a proposta que eu levara – entre o telefonema e a minha chegada, surgiu outra melhor. Desconfio que ele já sabia disso.

Poderia ter saído de lá com a melhor história da vida e da obra daquele sujeito diferenciado e privilegiado, mas idiossincrático quanto qualquer outro na multidão e, naturalmente tão contraditório quanto um socrático deve ser. Não fi-lo. Não me arrependo. Nunca mais cruzei pessoalmente com ele. Talvez nos vejamos no Congresso Brasileiro de Escritores que vai ser realizado de 12 a 15 de novembro, no mesmo teatro do Uniseb/COC de Ribeirão Preto, onde ele já se apresentou. Quanto ao disco que ele gravou, não sei que fim levou. Mas sei que, naquele dia, o Sócrates mais do que abriu o freezer de sua sala. Ele escancarou o livro de sua vida e posso ver, claramente, da arquibancada, que nele ainda há muitas páginas em branco a serem preenchidas. Longa vida, doutor!

Daniel Pereira é jornalista em São Paulo e pode ser contatado pelo pereira.daniel@estadao.com.br

Comentários

pernambuco disse…
Muito bom, Daniel. Nestes momentos, acontecem as melhores mémórias/reportagens de nossas vidas. Vi o doutor esta semana, na TV, já em fase reinserção nos canais convencionais, depois do susto (?) no fígado.
Curiosamente, Daniel, lembrei-me recentemente em lapsos de pensamentos que houve três figuras com inteligência (geral) acima da média no futebol brasileiro: Afonsinho, Tostão e Sócrates Brasileiro, os três doutores.....

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