E eu não fui mais professor


Luiz Roberto de Souza Queiroz

As férias escolares estavam terminando num ano qualquer do final da década de 1970. Comecei a me preparar para as aulas na Faap, onde eu dirigia o Departamento de Jornalismo.

Minha filha mais velha, Camila, 7 ou 8 anos e, como sempre, grudada em mim, prestava muita atenção à medida que eu reunia livros, anotações e anotava os temas para as aulas de Técnica de Redação, uma das duas Cadeiras que me cabiam. 

“O que você está fazendo, Papai?”, perguntou ela. Expliquei que, como as aulas noturnas iriam recomeçar, estava preparando o material.

Ela pensou um segundo e disse que “bom mesmo é tempo de férias, quando dá para ver o pai da gente todo dia”. 

No dia seguinte pedi demissão. 

        Foi um pouquinho difícil, a Faap fez parte da história de minha vida, me orgulho de ter ajudado a formar alguns grandes jornalistas, Neide Duarte, Hamilton de Souza, Dinaura Landini, para citar apenas alguns, e de ter enfrentado a censura e os anos de chumbo da ditadura à frente de meus alunos.

Lembro que uma noite cheguei à Faculdade e me informaram que dos quatro professores do Departamento que João de Scatinburgo me confiara, três tinham sido presos como ‘perigosos comunistas’ pelo DOI/CODI. As prisões e as torturas, se as houve – eles nunca contaram , mas pelo menos um deles, Rodolfo Konder, desistiu do Brasil e foi viver longos anos no exílio, no Canadá.

Soube depois que só não fui preso pois trabalhava no ‘Estadão’ e um dublê de jornalista e alcaguete, cujo nome é melhor esquecer, garantiu ao SNI que eu não era de esquerda, muito pelo contrário.

Da Faap ficou a lembrança da camaradagem, das noitadas de chope nos barzinhos da avenida Angélica, das discussões entre os professores, pois naquela época áurea do jornalismo acreditávamos que era possível burilar e melhorar o texto dos repórteres, mas não ensinar Jornalismo. 

        Para nós a gente nasce ou não nasce para ser repórter. Se, em vez de sangue, o carinha não tem tinta de imprensa nas veias –  naquela época a tinta deixou de ser diluída em produtos petrolíferos e passou a usar óleo de soja –, se não há tinta de imprensa nas veias, não adianta fazer a Faculdade, a pessoa nunca vai sentir a notícia, nunca vai perceber o texto se formando sozinho na cachola e implorando para ser posto no papel. 

        A Faap deixou saudade, mas em compensação minhas duas filhas tiveram o pai por perto e todo dia, como queria a Camila, nos anos mais importantes da vida delas. 

        Se hoje, tantas décadas depois, sinto orgulho de minhas filhas, das mulheres maravilhosas em que se transformaram, não me envergonho de ainda ficar babão quando, dia sim dia não, me telefonam ou passam um WhatsApp para perguntar apenas “pai, como está você, tudo bem?”

        A lembrança me veio ontem, numa assembleia tumultuada nas Terras de São José. O tema era candente, a gritaria tão grande que hoje vários companheiros devem estar com dor de garganta. 

        No meio da discussão sobre os motivos para afastar ou não afastar a síndica, uma senhora que não conhecia me toca o braço e pergunta, baixinho: ”Desculpa, mas eu acho que te conheço; há muito, muito tempo, você não foi professor na Faap?”.

        E de repente não havia mais assembleia, não ouvia a verborragia desenfreada do advogado de defesa, mas na mente revia minhas filhas, pequeninas, carinhosas, sentadas no tapete pedindo que eu lesse as histórias do Asterix e, sem perceber, elas estavam pedindo apenas para que eu não fosse um pai ausente. 

        Esse texto vai para elas e agora, tantos anos depois, é minha vez de perguntar: “Filhinhas, será que eu consegui ser o pai que vocês queriam ter?”

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