Plus ça change plus c’est la même chose (*)
Jotabê Medeiros (**)
No jornalismo, a coisa ganhou certos contornos de sadismo,
todo mundo do ramo que a gente encontra imediatamente pergunta:
"Atualmente, você tá fazendo o quê?".
Eu? Lavando a roupa de manhã e cozinhando feijão ao
meio-dia. Descendo a rua de bicicleta com os filhos e mastigando grãos de café
vermelhos no cafeeiro do vizinho.
Fora isso, a atividade periférica é a de sempre: escavar
umas histórias para pagar o aluguel. Nada mudou, embora tudo tenha mudado. Como
dizia outro João Batista jornalista, o Karr: quanto mais muda, mais é a mesma
coisa. A diferença é que parece haver menos concorrência, ninguém mais quer
saber de escarafunchar as coisas a fundo.
Antigamente, dizia-se que as notícias de hoje embrulhariam o
peixe de amanhã. Era uma metáfora do envelhecimento veloz da informação, que
vinha na forma de jornal impresso e só teria utilidade, no futuro próximo, para
o feirante embrulhar o peixe e entregar ao cliente.
Invertemos o ditado: agora, as notícias embrulham o peixe de
ontem. Sempre o mesmo peixe. Daí porque elas já nos chegam com um certo cheiro
de putrefação. Empapuçados de notícias, como numa churrascaria rodízio, poucos
notam o sabor ou a urgência das coisas.
Acho que se há uma coisa triste pra gente que tá
envelhecendo no ramo do jornalismo relacionado à música é o fato de
testemunharmos artistas da música envelhecendo também, muitos precariamente.
Óbvio que é recíproco. Os artistas têm presenciado o
desaparecimento de dezenas de cronistas, críticos de música e detratores
profissionais nos últimos anos. Fome ou peste ou cansaço, motivos diversos. A
saudosa maloca perdeu saudosos malucos, como Celso Pucci e Jean Yves de
Neufville.
No tempo dos grandes jornais, creio que a primeira impressão
que a gente passava é que acontecia muita coisa na vida da gente. Impressão
falsa. Em geral, passávamos a maior parte da vida na frente de um computador
obsoleto. Quando não, estávamos correndo para materializar ideias e fatos que
aconteceram muito longe da gente, e dos quais não tínhamos participado nem
testemunhado.
Nossa vida era invejada e os visitantes nos olhavam com
admiração, como se vivêssemos em um Olimpo. Mas, no geral, comíamos durante
muito tempo em restaurantes de quilo ou em refeitórios precários, passávamos as
tardes ouvindo de colegas piadas homofóbicas e racistas iguaizinhas às que se
ouvem num táxi malufista (sem esboçar nenhuma reação) e alimentávamos a vaidade
de termos sido lidos e discutidos por muita gente que não fazia a menor ideia
do que fazíamos ou de como fazíamos ou do por que fazíamos.
O que guardamos de um período muito grande trabalhando na
grande imprensa é aquilo que nos modificou e nos permitiu aprender uns macetes
de defesa pessoal para usar vida afora. Muitas vezes, o trabalho na grande
imprensa foi uma espécie de truque para a gente poder aprender algo sobre o
mundo, além, é claro, de sustentar os ossos e o estômago. É meu caso. Há uns
dois anos, foi noticiado que um músico de hip-hop norte-americano, na
impossibilidade de comprar um computador adequado para gravar seu novo álbum,
foi até um showroom da Apple e produziu tudo nos computadores de amostragem da
loja. Enxergo minha trajetória pelas grandes redações como a ampliação desse
truque: usei da megaestrutura dos veículos (mastodôntica, a certa altura) para
fazer meu disco autoral, porque de outra forma teria sido impossível.
Nas palestras, me perguntam muito sobre como se pode viver
numa grande redação. Penso que o manual de sobrevivência em uma redação precisa
ser aprimorado, porque já não há mais a grande redação. Há grandes vazios
demográficos, precisa saber ocupar bem o espaço. Não posso colaborar muito
agora com dicas. Mas algumas regras são eternas, e quase todas beiram a
impossibilidade.
Manter distanciamento e independência é a principal delas. É
famoso o caso da orelha de um livro que teve de ser cortada às pressas porque o
texto ali era do diretor de Redação que tinha acabado de assassinar a
ex-namorada. Foi um caso ruidoso. O assassinato chegara antes da noite de
autógrafos, foi preciso fazer uma imensa cirurgia plástica e retirar milhares
de orelhas.
É preciso desviar do cinismo com habilidade. Uma vez, um
outro chefe de Redação convocou todas as áreas relacionadas à cobertura
cultural para uma reunião. Ele queria na verdade fazer uma espécie de confissão
cristã e esperar perdão coletivo: enfrentava o que qualificou de “o pior
momento de sua carreira” (havia demitido uma colunista por delito de opinião e
isso vazou para o resto do mundo). Se ninguém tivesse notado, ele teria feito o
corte sem drama, sua carreira estaria imaculada. Apesar de seu arrependimento,
ele ordenou uma devassa nos computadores da empresa para saber quem havia
vazado a história. Outro dia eu o vi enrolando umas moças num café, parecia
estar discorrendo sobre novos modelos de negócio – alguém certamente vai na
dele de novo.
Nunca perco tempo com os apocalípticos ou os novos profetas
da internet. A chegada da internet às redações é mais antiga do que todo mundo
pensa. Em 2001, há exatos 16 anos, já se dirigiam todas as baterias para a
internet, os portais bombavam em direção a um admirável mundo novo. Eu lembro
perfeitamente do Rock in Rio de 2001, que foi uma loucura, a sala de imprensa
parecia o Titanic de tão grande, tantos eram os jornalistas novos. Os primeiros
dez anos da experiência do jornalismo na internet foram tão histéricos quanto
inúteis, nada se aprendeu, nada se guardou – conheço veículo que deletou
completamente o que foi produzido exclusivamente para aquele período quando
adotou um novo hardware para sua redação.
Assisti a dezenas de palestras e sermões e discursos de
chefes voluntariosos sobre a necessidade de se adaptar ao novo mundo, às novas
tecnologias, para sobreviver. Mas, cada vez que há um modelo novo, ele já nasce
velho, porque é gestado em cabeças velhas, obcecadas primeiro em convencer os
anunciantes de que ainda estão no jogo – antes mesmo de afirmar a necessidade
das coisas. Uma vez, o jornal no qual trabalhei descobriu que seus cartunistas
eram dos anos 1950. Tentou modernizar. Fui chamado por uma editora executiva
que me pediu alguns nomes. Eu pensei: é hora de ir ao topo, de chamar o que há
de melhor no desenho atualmente. Chamei Lourenço Mutarelli e Marcello
Quintanilha, dois expoentes das artes gráficas. Eles não duraram seis meses: o
conselho editorial os considerou corpos estranhos no jornal, e (crueldade)
pediu para que eu informasse a eles que seu trabalho não teria continuidade.
Rupturas e descontinuidade são marcas do jornalismo que se
esgota agora, o impresso. Mas tente achar alguém que se diga responsável por
essas atitudes de marcha à ré; nunca vai achar ninguém. Estão levando alguma
outra empresa para o buraco nesse momento.
Acossado pela busca do milhão de cliques, o jornalismo vive
um momento de confusão. “Justin Bieber posta foto nu na praia” é o parâmetro da
isca perfeita para o leitor mórbido. Não há como competir com esse tipo de
coisa. E as estratégias para se alcançar isso são bizarras. Houve um caso
recente, no Estado de S .Paulo, em que se cogitou colocar uma lâmpada giratória
colorida sobre a mesa de editores-chefes, no centro da redação. Essa luz seria
vermelha, e iria progressivamente ficando amarela e girando menos quanto mais
escassos fossem os cliques de leitores nas reportagens e textos online. O
mecanismo, do qual desistiram na última hora, possibilitaria aos chefes saírem
pela redação admoestando repórteres e redatores para melhorarem seu desempenho,
buscarem mais Justin Biebers pelados. Espero sinceramente que os encontrem.
Uma vez, durante um almoço no jornal, uma amiga me disse:
“Você é muito cheio de princípios”. Eu disse: “Não é verdade, tenho apenas um:
eu adoro o que faço. Todo o resto é decorrência disso”.
Nada mudou.
(*) "Nada mudou, embora tudo tenha mudado", segundo tradução livre do título do texto publicado originalmente na edição 1.116 do semanário Jornalistas&Cia e que é aqui reproduzido com autorização do autor.
(**) Jotabê Medeiros (jota bemed@gmail.com) é Jornalista e atuou por mais de 20 anos como repórter de cultura do Estadão, além de ter passado, entre outros, por Veja São Paulo, Folha de S.Paulo e CNT/Gazeta. Foi também crítico na revista SomTrês. Titular do blog El pájaro que come piedra, prepara-se para lançar a biografia do cantor e compositor Belchior, recentemente falecido.
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