O suplício de um repórter


Carlos Conde. Jornalista

        Não há nada mais doloroso para um jornalista do que ter em mãos uma notícia muito importante e exclusiva e não poder divulgá-la. Vivi essa experiência mortificante na noite de 13 de junho de 1986. Nesse momento eu era o correspondente diplomático do jornal "O Estado de S. Paulo” em Brasília.

        Naquela noite o deputado Márcio Santilli, do PMDB, me telefonou às 22 horas e perguntou: “Topa jantar comigo? Preciso muito falar com você”. Fiquei dominado por aquele estado de graça que deixa os jornalistas em êxtase quando percebem que uma informação relevante se aproxima. Voei para o hotel onde Santilli morava.

        Até aquele instante (governo Sarney) e nos dois governos anteriores, dos generais Geisel e Figueiredo, fatos destacados haviam acontecido na política externa brasileira. Entre eles, o reconhecimento, como novas nações, das ex-colônias portuguesas na África; o estabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China; o voto antissionista na ONU; a nova política para o Oriente Médio; o acordo nuclear com a então República Federal da Alemanha; o rompimento do acordo militar com os Estados Unidos; e a guerra diplomática com a Argentina por causa da hidrelétrica de Itaipu.

        Mas faltava a cereja do bolo: o restabelecimento de relações com Cuba. Os governos dos generais Geisel e Figueiredo entenderam que esse seria um passo ousado demais diante da intolerância da “linha dura” do sistema militar. A iguaria maldita não passaria na garganta dos componentes dessa ala radical. O governo Sarney conseguiria avançar perigosamente?

        Como cães perdigueiros esfomeados, meus colegas da cobertura diplomática e eu colocamos todo nosso apurado faro na perseguição daquela notícia bombástica. Eu havia quase implorado que essa informação me fosse passada com ao menos vinte e quatro horas de antecedência. Acionei minhas melhores fontes no Palácio do Planalto, no Itamaraty, nos ministérios militares e nas Comissões de Relações Exteriores do Senado e da Câmara dos Deputados.

        Márcio Santilli, meu anfitrião daquela noite, era um influente membro da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e uma das minhas fontes mais preciosas. Logo que cheguei ele soltou o rojão: “Tenho uma bomba para você”. Mesmo já sendo, naquela altura, um jornalista experiente senti, ao ouvir a frase, o deslumbramento de um repórter principiante ao se deparar com sua primeira grande reportagem.

        Santilli continuou, sublinhando as palavras: “Amanhã, ao meio-dia, o Brasil vai reatar relações diplomáticas com Cuba”. Por pouco não tive um orgasmo profissional. A seguir, porém, veio a ressalva que soou para mim como uma sentença de morte: “Mas você não pode publicar”.

        O jovem parlamentar apresentou suas fortes razões: “Hoje à tarde nós, senadores e deputados, demos a palavra de honra, ao chanceler Abreu Sodré, de que dificultaríamos ao máximo a divulgação dessa bomba. Estou cumprindo a promessa que te fiz de te avisar com antecedência”.

        Ele, normalmente descontraído, assumiu um ar solene: “Se você publicar meu pai vai me amaldiçoar pelo resto da vida por ter jogado minha honra no lixo”.

        Compreendi, com meu coração envolto em profunda frustração. Em minha longa carreira, várias vezes chorei de alegria. Essa foi a única ocasião em que tive vontade de chorar de tristeza.

Alguns pontos de bastidor para os jovens Estudantes de Jornalismo:

1- A fonte é sagrada. Você não pode traí-la sob nenhuma hipótese. Você se desgraçará com ela para o resto da vida. Essa é uma quebra de confiança que não tem conserto. A fonte não só nunca mais te fornecerá nenhuma informação como sairá dizendo que você é um jornalista desleal. Quebrar um off é um dos pecados mortais da nossa profissão.

2- O deputado tinha cumprido o trato que fizera comigo: se soubesse, me contaria. Ele cumpriu a promessa. Mas estava bloqueado pela palavra de honra. Era um homem e um político que ressuscitava os velhos e bons tempos em que fio de bigode valia como assinatura em documento.

3- Em uma cidade pequena como Brasília, tudo se descobre. Mais cedo ou mais tarde se desvendaria o aparente mistério. E Márcio, um homem honrado, passaria a ser visto como um desonesto, que não cumpre a palavra empenhada.

4- Havia a minha condição de repórter. Quando saí do jantar havia tempo para que o Estadão incluísse essa notícia importantíssima, exclusiva. Mas aí o desonesto seria eu. Minha reputação profissional iria parar no ralo. Eu nunca me perdoaria. São mais de 50 anos de profissão sem nenhum deslize.

5- Além do que eu perderia uma das minhas fontes mais preciosas. 

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