Seis meses em Campinas

Cláudio Amaral

Cheguei em Campinas em novembro de 1970.

Viajei a noite toda de ônibus. Primeiro, de Marília a São Paulo, pelo Expresso de Prata. Depois, de São Paulo a Campinas, pela Cometa.

Ao descer do ônibus, no centro de Campinas, perguntei aos motoristas do ponto de táxi mais próximo se eles conheciam a sucursal do Estadão e um deles se dispôs a me levar.

Rodamos pelo menos 15 minutos e quando lá cheguei, e depois de ter pagado a corrida e dispensado o táxi, fui informado por um dos funcionários do local que lá era a distribuidora de jornais.

“A sucursal fica no centro”, disse-me um rapaz, que logo se prontificou a me levar.

Fomos numa Kombi, o que para mim não era novidade, porque eu havia aprendido a dirigir automóveis exatamente num veículo como aquele, de propriedade de meu pai.

A novidade foi saber, ao chegar à sucursal, que não precisava ter feito aquelas duas viagens, do centro à sede da distribuidora de jornais, e de lá para o prédio da sucursal. Bastava ter atravessado a praça onde eu havia desembarcado do ônibus da Cometa.

Apresentei-me ao chefe da sucursal, Mário L. Erbolato, e ele aos demais profissionais da área, alguns da redação e outros da administração.

Amigo Arnaldo

Uma das pessoas que trabalhavam há anos na sucursal de Campinas do Estadão era o Arnaldo, uma espécie de pau pra toda obra.

Baixinho, gordinho, óculos de lentes grossas, Arnaldo era falante e simpático. Foi a pessoa que mais me ajudou a conhecer a sucursal e a cidade.

Operar o telex foi a primeira tarefa que ele me ensinou.

Arnaldo sabia tudo. Era um arquivo ambulante. Quando a saudade apertava e eu queria ir a Marília para ver a Sueli, meus pais e meus irmãos, ele se prontificava a acompanhar o jogo de domingo, no estádio da Ponte Preta (Moisés Lucarelli) ou do Guarani (Brinco de Ouro da Princesa).

Ao final de cada partida, Arnaldo pegava o telefone mais próximo, ligava para o Estadão e dizia, conforme minhas instruções: “O Cláudio Amaral pediu para eu transmitir o texto dele”.

Jamais, em seis meses, alguém desconfiou que semana sim, semana não, eu viajava para Marília e o Arnaldo fazia o meu trabalho. E ele nunca me pediu um favorzinho sequer por estes favores.

Como se tudo isso não bastasse, o Arnaldo matou minha fome por diversas vezes. Por quê? Porque os pauteiros do Estadão viviam me pedindo reportagens pela região. Eles não tinham consciência de que eu era o único repórter da sucursal. Por conta disso, pelo menos uma vez por semana eu saia bem cedo de Campinas, no Opala do fotógrafo Antônio Carlos Erbolato, filho do chefe, e quando voltava o Banco Mercantil, onde eu tinha conta, já havia fechado. Sem dinheiro no bolso, embora tivesse saldo no banco, eu ficava sem comer. E quando percebia, Arnaldo me convidava para comer um sanduíche no bar mais próximo. Fez isso por muitos domingos, ora no Moisés Lucarelli, ora no Brinco de Ouro. Santo Arnaldo!!! Este é um Amigo do qual jamais vou me esquecer.

Só deixei de passar fome em Campinas quando abri uma conta num pequeno restaurante próximo ao Diário do Povo. Meu avalista junto ao estabelecimento foi o diretor de Redação, jornalista e vereador Romeu Santini, que até março de 2008 era secretário Municipal de Cooperação Internacional.

Eu havia sido admitido na sucursal do Estadão exatamente na vaga de Santini, que se indispusera com o jornal. E pouco tempo depois ele me convidou para escrever uma coluna esportiva no Diário do Povo. Aceitei porque precisava de uma complementação salarial, mas, como não podia me indispor com o Estadão, assinava “Amaral Júnior”.

Todos os assuntos

Como único repórter da sucursal, eu acompanhava e escrevia sobre tudo, em Campinas e na região.

Era obrigado a ir a todas as solenidades do Exército, porque o comandante regional, coronel Rubens Resstel, era muito amigo dos Mesquita, donos do Estadão.

A Prefeitura de Campinas também era pauta diária para o Estadão, porque o prefeito Orestes Quércia havia aprendido, como poucos, a pautar os jornais locais, estaduais e nacionais. Afinal, tinha sido repórter. Quércia, aliás, era um protótipo do que viria a ser, 20 anos depois, o também ex-repórter Fernando Collor de Mello, ou seja, um mestre em fazer os jornais e os jornalistas trabalharem para ele e ajudá-lo a atingir os objetivos que haviam definido.

Além dos assuntos locais, políticos e militares, eu cobria também, e ao mesmo tempo, as pautas esportivas: a Ponte Preta, que era vice-campeã brasileira de futebol, o Guarani, arquiinimigo da ‘Macaca’, e o basquete do Tênis Clube, um dos melhores times masculinos adultos do Brasil.

Na Ponte Preta, tive o privilégio de acompanhar de perto o trabalho de gente como o treinador Cilinho e os atletas Nelsinho Baptista (que viria a ser lateral direito do SPFC e hoje também é técnico de profissionais) e Dicá (que depois jogou no Santos FC), entre outros.

No Guarani, aprendi muito com dois treinadores: o caipira Zé Duarte e o internacional Armando Renganeschi, nascido na Argentina, em 1913, e falecido em Campinas, em 1983.

Daquela época, ou seja, de novembro de 1970 a maio de 1971, guardo dois fatos inesquecíveis:

1) Um dia, logo cedo, fui barrado na porta do Moisés Lucarelli, porque, segundo o porteiro, que me conhecia, “o Cilinho quer fazer um treino secreto”. Não tive dúvida: dei a volta por fora do estádio e fui assistir o tal “treino secreto” do alto da arquibancada, escondido atrás das cabines de rádio, no lado oposto da famosa linha do trem. No dia seguinte, jornais do Brasil todo publicaram que a imprensa havia sido proibida de entrar no campo da Ponte Preta por ordem do treinador e o Estadão publicava em detalhes o esquema tático que Cilinho havia definido para o jogo de domingo, contra o Guarani.

2) Uma noite, no ginásio do Tênis Clube, eu transmitia meu texto usando o telefone da secretaria do departamento de esportes e um colega, especialista em basquete do Correio Popular, não gostou do que eu escrevi a respeito da derrota do time local e avançou sobre mim. Ele tomou o telefone da minha mão e disse ao colega que estava do outro lado da linha, na Redação do Estadão, em São Paulo, que tudo aquilo era mentira. Não apanhei dele por pouco, porque o homem era grande e gordo.

A primeira noite

Outro fato inesquecível de minha passagem por Campinas foi a primeira noite.

Tudo era novo para mim naquela cidade e, feitas as primeiras apresentações, logo recebi duas pautas e sai às ruas com o Toninho, o fotógrafo filho do chefe.

Voltei e escrevi horas a fio. Depois, fui para o telex, como o qual não tinha a menor intimidade. Conclusão: quando terminei meu trabalho era tarde da noite. “Aonde eu vou dormir?”, me perguntei. E dormi ali mesmo, num pequeno sofá. Dormi mal, claro, e acordei todo quebrado e sem ter como nem sequer tomar um banho.

Ao me ver naquele estado, na primeira hora da manhã, Arnaldo pegou os jornais locais e começou a ler os pequenos classificados em busca de um lugar para eu morar.

Fui bater numa casa de família, na Rua da Conceição, a cerca de um quilometro do jornal. Foi lá, na residência de uma senhora e o filho dela, que dormi e tomei banho por seis meses.

Eu dividia o quarto da frente com mais dois rapazes. Um deles eu nunca vi a cara. O outro, encarei uma única vez, numa manhã de sábado, quando tive oportunidade de convidá-lo para um café com pão e manteiga na padaria mais próxima.

Na tentativa de fazer amizade com aquele meu colega de quarto, me adiantei para pagar a conta, mas ele não aceitou e disse, secamente: “Cada um paga a sua”. Pagamos e saímos, cada um para o seu destino. Nunca mais nos vimos.

Por falar em café com pão e manteiga, numa outra manhã eu parei no bar que funcionava no térreo do prédio do Correio Popular, na mesma Rua da Conceição. Depois de comer bem, enfiei as mãos nos bolsos e... nada. Havia esquecido o dinheiro em casa. Que vexame!

Primeira página

Foi trabalhando na sucursal de Campinas que fiz a primeira reportagem com chamada na primeira página do Estadão.

O presidente da Petrobras era o general Ernesto Geisel e ele não falava com jornalista. Primeiro, porque era militar. Segundo, porque dirigia uma empresa estratégica para o País.

Mesmo assim, todos os jornais mandaram repórteres para acompanhar a visita de Geisel à Replan, a Refinaria do Planalto, em Paulínia, município próximo a Campinas.

Após as andanças de Geisel e comitiva por dentro da refinaria, os anfitriões mandaram servir um coquetel.

Fiquei de olho nele e me arrisquei a abordar o homem quando ele mesmo foi se servir.

Respirei fundo e disse: “Bom dia, general”.

E não é que ele respondeu?

“Bom dia, meu jovem. O que é que você bebe?”

Como eu não sabia o que responder, falei o que me veio à mente: “O mesmo que o senhor, general”.

“Com ou sem pimenta?”, ele emendou.

Só aí que eu vi que ele havia se servido de suco de tomate, uma bebida que não me agradava em nada.

“Sem pimenta, por favor, general”.

Logo após o primeiro gole, eu me arrisquei novamente e perguntei: “Quando será a próxima assembléia geral da Petrobras, general?”.

E, para minha surpresa, ele me disse a data, o horário, o local e os assuntos que entrariam em pauta. Tudo com exclusividade.

No dia seguinte, lá estava meu furo, na primeira página do Estadão. E desde então eu gosto muito, mas muito, de suco de tomate.

Copa São Paulo

Meus esforços e minha dedicação durante os seis meses em Campinas não foram em vão.

No início de 1971 eu fui convidado a cobrir as férias de um colega, na sede, em São Paulo.

Tive o privilégio de acompanhar a Copa São Paulo em que se destacou uma geração de ouro do futebol brasileiro. Em especial, Falcão, jogador do Internacional de Porto Alegre, que viria a ser o novo “Rei de Roma”, líder como atleta e treinador da seleção brasileira e hoje é comentarista da Rede Globo de Televisão.

Acompanhei também a badalada e milionária transferência do jogador Leivinha, da Portuguesa para o Palmeiras.

Voltei para Campinas ao final de um mês, mas dois meses depois estava novamente em São Paulo, desta vez como repórter fixo da Editoria de Esportes do Estadão.

1/4/2008 01:16:20

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